domingo, 5 de dezembro de 2010

PROSA NACIONAL - II CONCURSO - 3º LUGAR . *3 Trab. Clas.

VÔO CEGO

RAIMUNDO NONATO ALBUQUERQUE - FORTALEZA/Ce

Em memória das vítimas do acidente aéreo de 08 de junho de 1982.

Amamos sonhos. Corpo de baile, razão de vida. Disciplina árdua, abstinência da gula, martírio transcendido em pura essência, em poesia dançada. Leveza... Ritmo, movimento... a mais perfeita concretização da música. O corpo instrumento da beleza. E a graça etérea, de sensualidade velada, que encantava a tantos, enfeitiçou irremediavelmente alguém, que soube se chegar. Compartilhar emoção foi conseqüência natural. E, quando veio a certeza do sentir junto, a surpresa acanhada, antiquada: uma delicada aliança, jóia de família, primor de ourivesaria selou as juras.
Planos, carinhos, conversas, silêncios. Almas misturadas à pele. Balé, entre delicado e frenético. Nas viagens, os corações trocados ansiavam reencontro. Ela no redemoinho dos aplausos, ele na espera ansiosa, olhar para o céu, consultar horários. Era o cisne, que ora adejava a tristeza em ondulações sutis, comovendo as platéias, ora selvagem, podia ser reconhecido lá no alto.
Amamos idéias. Por extenuante que fosse, o respeito à arte era maior. E nem cogitavam encerrar a promissora carreira. Dançaria até o fim. Ele era seu regresso. Sempre. Sempre: nunca dizer sempre. O cisne faz-se condor. A elegância se desmancha em catastrófica aterrissagem... Pesadelo.
Amamos corpos. Vivos ou mortos. Na morte ainda amamos os restos de amor. Até gatinhos põem as patas sobre os companheiros mortos em acidentes, como a suplicar que não os tiremos deles. Triste enterrar um ser amado. Alem dos limites da tristeza, o desespero de não ter o que enterrar. Perplexidade. Na mistura desordenada, sem dono, de ferro gente plástico carvão e desgraça, espalhados por quilômetros, algo humano precisava de nome para poder existir. Então, carne pele vísceras pêlos dentes ossos sangue urina bile esperma, forma separados e batizados de material humano. O trabalho de resgate durou vários dias, sob tempo ruim.
Amamos troncos. Parentes alucinados por meio tórax, maior fração distinguível entre pastas e postas putrefeitas. Consternação. Impossível reconhecer o não ser. Disputar em mais. Aves de rapina às avessas, repugnando o despojo.
Amamos ilusão. Ela dançaria ainda. Como sempre, causando frisson, acima da razão e a despeito dos fatos. A beleza não se extingue assim. Não era. E não chovia, e nada acabaria...
Amamos cabeças. Arcadas dentárias são boas pistas para o que já não é. Mas arcadas dentárias estão contidas em cabeças, e cabeças não havia.
Amamos mãos, vestígios que já forma de afagar, aquecer, dividir, escolher, servir, amparar... De praticar misérias também. Restar nenhuma. A não ser indiciadas por unhas, que contam histórias: personais, bem cuidadas, recatadas, discretas, ousadas, tímidas roídas... Padres e pastores a convencer sepultamento coletivo. Relutância. Desistir é nunca! Eles não sabem do amor imenso. Não sabem de nada! Querer a sua mulher. Sua... Dissolvida na montanha de carniça. Querer assim mesmo.
Amam-se embriões, prenúncio de vida. Pois na resignação, prenúncio da morte, amamos dedos. O sentimento se reduz, apura-se. Concentrado, como perfume. Da nauseabunda carnagem coletiva emerge um anular, apontando para cima. Delicadamente. Nele, a aliança, o grito de todas as doces memórias e a estranheza do alívio: enfim, identificada. Agora era chorar.

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